A festa do Dois de Julho em Caetité; leia a Revista do Bicentenário

“Já no século XIX uma comissão formada por cidadãos influentes cuidava de organizar o cortejo. Durante o ano a comemoração ia sendo planejada até culminar no cortejo que percorria as ruas principais – passando pela via que ainda hoje mantém o nome de Rua 2 de Julho. Cortejo essencialmente a pé, mas já contando com a cavalaria.”[5] Maria Lúcia Porto Silva Nogueira observa que “Vários memorialistas reafirmam a importância do desfile cívico do Dois de Julho em Caetité. Era uma festa que, desde o século XIX acontecia na cidade, e por isso deixou os seus moradores impregnados de um “verdadeiro civismo”. Havia uma comissão organizadora que se esmerava nos preparativos e ensaios e depois os festejos que duravam três dias, cooptando o entusiasmo e participação da população; durante e o desfile, havia várias paradas para discursos e recitação de poesias e, no terceiro dia, com apresentações teatrais, encerravam-se as festividades. Esta festa que é realizada até hoje, já passou por várias fases, alternando períodos de maior ou menor entusiasmo e até de alterações no seu ritual”.

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Helena Lima Santos registrou sobre esse período: “Em 1884, a Comissão Permanente dos Festejos de 2 de Julho, tendo à frente Antônio Gumes, fundou uma sociedade dramática e adquiriu o prédio do Mercado que, então, fora transferido para o Largo do Alegre; fizeram-se ligeiras modificações, sendo adaptado para representações, recebendo o teatro o nome de 2 de Julho, no local onde mais tarde se ergueria o Teatro Centenário”. A autora continua: “Era pensamento da Comissão construir um edifício mais amplo e apropriado, um verdadeiro teatro. Dispunha de avultada quantia angariada por Plínio de Lima e lhe foi cedido o S. Caetano por uma doação assinada pelo Barão de Caetité, antigo presidente da União, e pelo Tenente Catão Correia de Morais, Capitão Anselmo da Costa Lima, últimos representantes desta antiga sociedade”.

O “Teatro Centenário”, inaugurado em 1922 e demolido em 1972, teve importante papel nos festejos no século XX.


A esse respeito registrou Marieta Lobão Gumes: “Os preparativos para os grandes festejos do “2 de Julho” eram planejados e organizados por uma Comissão composta por diversos cidadãos caetiteenses e que, com grande antecedência, se punha em atividade, arrecadando fundos, promovendo a sua divulgação através da imprensa, mantendo o necessário contato com as autoridades locais, no sentido de conseguir subvenções que fizessem frente as inarredáveis despesas para a consecução do programa de comemorações”.

Gumes ainda descreve, com detalhes, os preparativos e realização de cortejo, num formato que essencialmente permanece até os dias atuais: a comemoração tinha início na noite do dia 1º de julho com a “levada” de um carro alegórico “representando um caboclo esmagando um dragão”, saindo o cortejo do “final da rua Barão de Caetité para o alto da Ladeira, onde havia um marco delimitando a área urbana e denominado a Pedra do Conselho, acompanhado pela população e ao “som dos dobrados brilhantemente executados pela Lira Caetiteense”. O dia seguinte principiava com uma alvorada com toques de clarim e fogos até que, pelas nove horas, o cortejo descia trazendo o carro, passando pela rua 2 de Julho.

Ela prossegue seu relato falando do encerramento na Praça da Catedral, onde era celebrado o Te Deum e, num elemento hoje inexistente, contou que havia a encenação de uma peça teatral no “Teatro Centenário” onde “as senhoras e senhoritas da sociedade apresentavam-se na sua melhor forma; as damas ricas, ostentando as suas joias caras e antigas que ressaltavam dos colos empoados ou dos vestidos de seda pura, ricamente confeccionados”. Do seu relato, ressalta, tem-se sobressaindo na organização e à frente da comissão organizadora a figura do Capitão João Antônio de Cerqueira que, com o apoio da esposa Theodolina Montenegro Cerqueira, levava a cabo os ensaios para o dia da festa. Um dos maiores colaboradores dos eventos da cidade foi João Gumes, pioneiro da imprensa sertaneja no final do século XIX, e que também foi “dramaturgo, além de ter fundado uma sociedade dramática que incentivava o desenvolvimento das representações cênicas na cidade, compôs dramas e comédias que foram encenados nas festividades religiosas e cívicas caetiteenses, principalmente nas comemorações do 2 de julho” e, por ocasião da festa, seu jornal “A Penna” ampliava o número de páginas.

O festejo, depois, seguiu o modelos das festas católicas, sendo patrocinado por um festeiro – que era aquele que “recebia a bandeira” do festeiro do ano anterior. Com a refundação da Escola Normal da cidade, esta passou a ter participação ativa durante os desfiles e, não raro, seus diretores eram também os festeiros, mantendo-se essa participação escolar mesmo com a mudança dessa escola para o Instituto de Educação Anísio Teixeira. Com a instalação da ditadura, em 1964, o festejo parou de ser realizado; ressurgiu na década seguinte e, desde então, não foi realizado somente no ano de 1976 (em razão da grande seca que ocorrera) e em 2003, sob uma alegada infestação de febre maculosa na região;[5] novamente, não foi realizada no formato tradicional nos anos de 2020 e 2021 com as restrições sanitárias da pandemia.

Elementos da Festa

Alguns elementos da comemoração estão protegidos pelo decreto municipal de tombamento.[4] Segundo Koehne, “a cada ano, um elemento era adicionado, outro esquecido; foi assim que, nos anos de 1960, apareceu a garça de “Seu” Idalino, antecedendo os caboclos (elemento que realçava o caráter de brasilidade da festa) e a marujada. Essa “garça” era uma espécie de “burrinha” sui generis: seu pescoço, feito com um cipó colhido nas matas vizinhas à cidade, quando puxado e solto simulava a ave dando bicadas: um elemento picaresco em meio à seriedade das lembranças de tantos mártires. Na Marujada, toda ela formada por elementos populares, tínhamos o comando de homens do povo como “Seu” Inocêncio, Júlio Potó, Manoel Bom-Nariz e Teodoro, parente deste. Além destes, estavam lá Gasparino da Ladeira e Bernardino, nomes quase esquecidos.”

A partir de 2012 o desfile passou, pela primeira vez, a contar com a participação das comunidades quilombolas caetiteenses, sendo este um elemento introduzido no festejo. Em 2010 a Secretaria Municipal de Educação acrescentou um subtema aos desfiles.[5] Dentre as ações tradicionais estão aquelas que antecedem aos desfiles dos dias primeiro e dois, como o “Levante do Mastro” diante da Catedral de Senhora Santana, e a realização de “ensaios” dos grupos de montaria.

“Levada da Cabocla” e “tapuiada”

Pelotão com os indígenas representados por crianças, em 2004
Dentre os elementos constantes do desfile está a figura do “caboclo”. Bartolomeu Mendes registra que em 1914 a comissão organizadora, tendo à frente João Cerqueira e Clemente Tanajura, procurou voltar aos elementos tradicionais da festa; assim, “na manhã do dia 02 de julho começou o desfile com a cavalhada (…) tapuyada, filarmônicas e uma criança caracterizada simbolizando o “gênio nacional”, esmagando o dragão do despotismo” (sic),[26] ao que Sérgio Armando Diniz Guerra Filho contradiz, analisando esse trecho da obra, afirmando que o autor “não apresenta indícios da presença do Caboclo (…) Não seria exagero a dedução de que a criança se vestira de índio, posto a posição de esmagar o dragão é típica das imagens de caboclo e cabocla nas demais festas”.

“Na noite do dia primeiro ocorre grande desfile onde um ricamente ornado carro alegórico com a “cabocla” matando um dragão (figura que, alegoricamente, simboliza a tirania colonial) desfila pelas ruas principais, sendo levado até a chamada “Pedra do Conselho”, situado diante do Cemitério Municipal. Ali o carro da Cabocla pernoita” para, no dia seguinte, ser buscado pelo cortejo cívico, sendo o carro finalmente levado até a Praça da Catedral, onde tem o encerramento de toda a solenidade com uma missa Te Deum celebrada.

“Cavalhada”
Bartolomeu Mendes consagrou a expressão popular da “cavalhada” como um dos elementos constantes dos desfiles; para este autor “tem sido utilizada como parte principal da festa”. Segundo ele “é um espetáculo de destreza e elegância! As acrobacias de exibicionistas habilidosos se misturam com o visual estético das mulheres extrovertidas e agradáveis, que se produzem neste dia, expondo-se ao público sobre os cavalos que conduzem”. A cidade se transforma numa grande passarela para onde convergem atores e espectadores.”

Koehne, em 2015, informa que existiam trinta e um grupos de montaria organizados para o desfile naquele ano;cita, ainda, que esse era um dos elementos novos incorporados à Festa e que “os cavalos passaram a ser o cerne dos desfiles, que sempre têm início na noite do dia primeiro de julho, quando se leva o Carro da Cabocla até o local onde ficava a Pedra do Conselho, lugar em que se reuniram os vereadores para proclamar sua brasilidade, em 1821”.

Situação atual

Em 2021, sem o desfile cívico em razão da pandemia, o prefeito deposita flores na “Pedra do Conselho”
Instituída em 2005 pelo governo do estado, a “Rota da Independência” é uma ação da Fundação Pedro Calmon (FPC) que percorre as cidades históricas do estado que tiveram participação nas lutas e que mantêm viva sua memória, sendo Caetité uma delas ao lado de Cachoeira, Maragogipe e outras. Na edição de 2019 a “Rota” foi realizada no Museu do Alto Sertão da Bahia, com palestra do professor da UFBA, Moisés Frutuoso, sendo a quarta etapa do projeto e ainda “com aulas públicas, exposição e atividades infanto-juvenis, através da Biblioteca de Extensão (Bibex)”.

Em 2020, com os festejos suspensos em razão da pandemia de Covid-19, a prefeitura efetuou o tombamento da Festa como bem histórico e cultural do município. “Para tornar a festa patrimônio cultural, o decreto observou as figuras históricas da cidade como o jornalista João Antônio dos Santos Gumes, seus filhos Eponina Zita e Sadi Rútilo, João Cerqueira, Luiz Buião, Aloísio Carvalho, Ricardo Ladeia, dentre outros já falecidos que dedicaram seus esforços por tornar o evento uma festa memorável”. Também como fruto da suspensão das ações presenciais, foram realizadas duas “lives”: a primeira, no dia 29 de junho, teve por tema ‘O significado do 2 de Julho na Independência do Brasil’ e participação do diretor da FPC Zulu Araújo e do professor Nivaldo Dutra, e mediação de Fernanda de Oliveira Matos; a segunda, no dia 1º de julho, contou com a participação do historiador dr. Argemiro Ribeiro e do memorialista André Koehne e mediação de Rosemária Juazeiro.[32] No ano seguinte, ainda sob as medidas sanitárias restritivas, a prefeitura promoveu um vídeo do humorista Ivan Mesquita (dito “Cêro”): “Num registro que ganhou o mundo, com o falar brincalhão do baiano, Cêro levou Anísio Teixeira, os poetas Plínio de Lima e Camillo de Jesus Lima, que estavam tranquilos no boteco ao som do grande Waldick Soriano, a tomarem parte ativa das lutas que aconteciam no Recôncavo Baiano”; e, finalmente, “o prefeito Valtécio Neves Aguiar fez uma live, hasteou bandeiras na praça e colocou uma coroa de flores na Pedra do Conselho, e fechou as homenagens com a celebração de uma missa com Te Deum”.

As comemorações contam com a presença de políticos e autoridades, além da população e milhares de participantes, das quais há muitos registros.

Em 9 de julho de 1914 o jornal “A Penna” dizia, na transcrição de Giane Pimentel: “Cabe ao Caeteté a honra de ter introduzido no alto sertão a louvável usança da festa cívica ao 2 de julho, como se constata do seu archivo municipal. (…) Recitaram lindas poesias das janellas de sua residência, o Major Antonio Neves e seu filhinho Affonso; (…) Seguiram-se na tribuna as interessantes crianças: Elza Castro que recitou a poesia „A Bandeira‟ do Dr. Frederico Lisboa, Silvia Silveira, Filomena Fagundes Silveira e Maria Julieta Cardoso, as quaes recitaram não menos lindas poesias. Foram todas applaudidas com enthusiasmo”. A autora frisa: “A festa ao Dois de Julho é, ainda hoje, a mais alta tradição cívica na cidade de Caetité”.

A festa de 1918 teve o seguinte relato por Áurea Costa Silva: “Acabara de anoitecer; os lampiões já estavam acesos em toda a cidade de Caetité, que, naquela noite de 1º de julho, se achava engalanada e festiva. Havia muitas fogueiras acesas por todo o percurso onde passaria o carro alegórico, rumo à ladeira do Conselho, de onde, na manhã seguinte, seria transportado em triunfo pelas ruas da cidade. Cavalheiros em disparada, ao som dos guizos das cavalgaduras, davam a nota pitoresca ao ambiente. A multidão reunia-se pelas calçadas, sob as estrelas e a lua cheia. Espocavam fogos ao iniciar-se o hino baiano, quando surgiu o cortejo cívico à entrada da rua Barão de Caetité. À frente vinha o carro alegórico, empurrado por civis e militares, seguido da tradicional tapuiada, em ritmo de dança guerreira,[nota 8] empunhando arcos e tangapemas e soltando assobios estridentes e ritmados; a banda de música, seguida pelo povo. O cortejo cívico fez várias paradas às portas das casas, onde oradores declamavam odes à grande data baiana. (…) Ás oito e meia, povo, autoridades, escolas e linha de tiro e a banda de música seguiram para a Pedra do Conselho”. Ela continua seu minucioso relato, do qual excertos dão a dimensão de como a cidade se envolve na comemoração: “Naquela noite, poucas pessoas dormiram, aguardando ansiosamente a alvorada do dois de julho, em que a Bahia se emancipou do jugo português. Aguardaram a madrugada com festinhas e churrascos, até que ela foi anunciada com salvas de tiros, a banda tocando o Hino Nacional, o toque dos clarins e o espocar de fogos…” Ela conclui: “E à noite, no Teatro Dois de Julho, foi levado à cena um emocionante drama: O Designado, de autoria de um ilustre filho da cidade. E foi assim que, com chave de ouro, encerrou-se os festejos ao 2 de julho, naquele ano de 1918.

Registro das edições

No ano de 1987, quando foi festeiro o engenheiro Maurício Lima Santos, o cantor caetiteense Waldick Soriano fez um show em praça pública, um “retorno [que] foi promovido por um dos maiores entusiastas desta comemoração, o prematuramente falecido Dr. Jairo Francisco Ramos Pontes”.

Maria Lúcia Nogueira registrou: “Neste ano de 2010, a festa do Dois de Julho foi toda em comemoração dos “200 Anos de Caetité’; reatualizando todos os ritos que compõem a festa desde seus primórdios, o desfile cívico contou com o apoio das Secretarias Municipais de Educação e de Cultura e de outros segmentos da sociedade; houve grande participação de Escolas, Grupos de Montaria, etc. e muita gente vinda de municípios circunvizinhos, de cidades próximas e distantes para assistirem ao desfile”.

No ano de 2013, o evento foi precedido, em junho, do “Primeiro Ensaio Oficial de 2 de Julho, que foi no domingo, dia 9. As ruas da cidade foram tomadas pelos Grupos de Montaria reforçando o regionalismo em comemoração à Independência da Bahia. Este ensaio foi coordenado pelo Grupo de Montaria Burro Preto”. “Na Praça da Catedral foi montado o Museu da Independência, com imagens, figuras e textos que contaram de forma lúdica e bastante interessante, a história desse importante momento” para o estado da Bahia. Nesse ano a festa teve por subtema “2 de julho – Tradição e Movimento / Sertão Produtivo, Identidade e Pertencimento”; no dia primeiro houve a “Levada da Cabocla à Pedra do Conselho, no Bairro Buenos Aires, logo após, houve um show com Max e Leo, na Praça da Catedral”, sendo no dia seguinte “as ruas de Caetité foram palco de manifestações culturais, apresentadas no tradicional Desfile Cívico. Um grande público da cidade e região” assistiu ao “desfile [que] envolve diretamente mais de 2 mil pessoas, cavaleiros e amazonas, distribuídos em 13 blocos e em 31 Grupos de Montaria”.

Em 2017 “após a tradicional Levada da Cabocla”, houve na praça um show da banda 100 Parea e a temática do desfile do dia dois foi “respeito à liberdade, apreço à tolerância”. Na edição desse ano o “desfile contou também com a participação inédita de índios tupinambás, que emocionaram ao mostrar as raízes de um povo que nunca parou de lutar”, além da “participação de escolas municipais e estaduais, fanfarras, Forças Armadas Brasileiras, filarmônicas, Maçonaria, Desbravadores, vaqueiros, trabalhadores rurais com carros de boi, comunidades quilombolas do município, além dos 28 grupos de montaria, que sempre são um destaque à parte da festa”.

Em 2019 a festa teve como temática “Liberdade para autonomia, criticidade e formação”; no dia 29 de junho houve o último ensaio dos grupos de montaria com o levante do mastro na Praça da Catedral e “Campeonato de Equinos no Parque de Comercialização de Animais Vereador César Ladeia”; no dia 1º houve a tradicional “levada da cabocla” com um show ao final da banda “Arreio de Ouro”. Além disso, a programação estadual da “Rota da Independência”, com biblioteca móvel nas escolas municipais, teve aulas públicas sobre “O Alto Sertão na Guerra”.[42] Nesta edição também foi homenageado Wagner Marques de Oliveira Silva, mestre de capoeira “Imburana”, morto em junho daquele ano, aos 32 anos de idade. No dia primeiro o evento “durou pouco mais de três horas e contou com dois mil e duzentos participantes. O desfile foi dividido em quadros e abordou temas como: feminicídio, demarcação das terras indígenas e ainda cobrou mais investimento na educação”.

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